Rafael Belincanta*, em Bogotá
Tudo é observado por olhares curiosos de algumas vacas e cabras que se distraem da procura de novos brotos entre os espinhos. Assim entramos em La Guajira, zona semiárida no extremo norte da Colômbia na fronteira com a Venezuela, terra ancestral da etnia Wayuu.
O território detém o segundo menor índice de desenvolvimento humano da Colômbia. É marcado pela pobreza e conflitos armados, crises de governo e agora também pelas mudanças climáticas e pesada migração. Com a crise na Venezuela, o departamento de La Guajira passou a acolher a maior parte dos quase 1,3 milhão de imigrantes venezuelanos que entraram no país, além dos 22 mil colombianos retornados.
Após cinco horas de estrada de chão batido chegamos à comunidade Guayabal onde o número de moradores quadruplicou nos últimos anos. Diante da situação de calamidade pública por falta de água e pela emergência migratória, o Programa Mundial de Alimentos (PMA – WFP, em inglês) entregou alimentos que devem garantir o sustento das famílias por três meses.
“A coisa mais importante que existe na comunidade é a solidariedade das nossas autoridades tradicionais ao dizer ‘venham, vocês são parte da família ancestral’. Aí, cedem um terreno aos recém-chegados e ali constroem uma casa. Das 26 famílias, somente seis são daqui. As outras 20 vieram da Venezuela”, conta Ramasio Tiller Ipuana, da etnia Wayuu, diretor do escritório do PMA em Riohacha.
Agora, com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em um programa de resposta rápida à crise alimentar, os Wayuu estão aprendendo a passar dos cultivos de subsistência à agricultura anual. Graças a poços artesianos – a maioria de água salobra – as comunidades têm água disponível para os animais e para os cultivos. “O sistema de irrigação nos permite plantar o ano inteiro. Antes, quando havia secas prolongadas morríamos de fome”, recorda Albino Ipuana, 23 anos.
Com a filha pequena no colo, José Inácio Panas, 29 anos, chegou da Venezuela à pé após cinco dias de viagem. Ele afirma que não pretende voltar. “Como eu transportava combustíveis de forma ilegal, um dia a polícia me parou e disse que me prenderia. Foi quando decidi deixar tudo para trás e voltar para minha terra e com a ajuda da FAO aprendemos a manejar o terreno e hoje posso dizer que sou um agricultor”, afirma.
Colheita garantida
Outras quatro horas de viagem e chegamos à comunidade Tutchon. Um grande moinho de vento domina o horizonte em frente a uma pequena lavoura de milho. O terreno arenoso absorve a água em questão de poucos segundos. Porém, com a aplicação de adubos orgânicos provenientes da criação de caprinos e ovinos, os especialistas da FAO conseguiram chegar a um ponto ideal de qualidade e umidade do solo, principalmente por meio do plantio de leguminosas, que fixam o nitrogênio no solo.
“Nossa projeção é de que eles poderão seguir trabalhando por um ano e meio com a possibilidade de realizar entre três e quatro colheitas por ano ao aplicar a rotação de culturas”, aposta Humberto Rodriguez, coordenador de resiliência e riscos da FAO.
A FAO capacitou mais de 40 líderes em gestão de riscos para que pudessem aprender a cultivar no ambiente adverso onde vivem. “Trabalhamos com as características das comunidades, com o que elas têm no seu entorno, de uma maneira prática e simples, somando à ancestralidade tecnologias de produção de alimentos para consumo humano e animal”, conta Maria Consuelo Vergara, especialista em gestão de riscos da FAO.
A etnia Wayuu é organizada de forma matriarcal: são as mulheres que tomam as decisões que envolvem toda a comunidade. Embora as chamadas “autoridades tradicionais” detenham o poder de decidir, raramente elas se envolviam no cultivo da terra ou na criação de animais. “Sou agricultora, me sinto agricultora. Antes eram só os homens que trabalhavam e agora eu também coloco a mão na terra. Temos trabalho todos os dias, da semeadura à irrigação”, relata Lucero Granadillo, líder da comunidade Tutchon.
Povo de resiliência milenar, os Wayuu e Tutchon são donos de uma lavoura onde além do milho também crescem feijões, berinjelas, mandiocas, ervilhas e pimentões. Enquanto admira os pés de tomate que crescem no viveiro protegido do sol abrasador, Luiz Granadillo já comemora a primeira colheita que se aproxima e que vai garantir alimento para a comunidade até o próximo verão. “Antes podíamos plantar somente quando chovia, e a última seca durou quatro anos. Agora, com o moinho de vento, temos água sempre e aqui não morremos mais de fome”, afirma.
Emergência alimentar
No início de junho, a Agência da ONU para os Refugiados (Acnur) divulgou que de um total de 4 milhões de venezuelanos que fugiram do regime de Nicolás Maduro, 1,3 milhão vieram para a Colômbia. E os colombianos retornados e venezuelanos que voltam às terras ancestrais são uma minoria.
A maior parte dos migrantes não tem acesso a terras e se concentra nos núcleos urbanos, onde a emergência se transformou em algo permanente. Para levar alimentos a milhões de pessoas, o PMA trabalha em conjunto com programas sociais do governo colombiano e outras organizações sem fins lucrativos. Foram criados refeitórios ao longo da fronteira onde são servidas duas refeições diárias num total de mais de 28 mil pratos por dia.
“Esse número vem crescendo paulatinamente com o aumento da população venezuelana imigrante e, como estamos perto da fronteira, o fluxo é permanente. A população migrante venezuelana é a nossa prioridade, com preferência às mães lactantes e gestantes e crianças menores de 5 anos, que são a maioria, assim como a população vulnerável de colombianos retornados”, destaca Sandra Ribeira, coordenadora geral da Fundação Guajira Naciente.
Juan Santiago, 18 anos, terminou de comer um prato de macarrão com frango, arroz e salada. Ele deixou Maracaibo junto com a mãe e com a irmã. Os avós ficaram na Venezuela. “Estou aqui há 5 meses e hoje temos o que comer e graças a Deus uma senhora quis nos ajudar e não pagamos onde estamos hospedados. Espero que algum dia a situação da Venezuela melhore para que possamos voltar. Mas não sei como poderá melhorar, talvez um milagre de Deus”, diz Juan, após um longo silêncio.
Alejandro Flores, 29 anos, está na Colômbia há quase dois anos. Ele denuncia maus-tratos por parte de colombianos. “Nos tratam como se fôssemos indigentes porque não é sempre que temos dinheiro para alugar um lugar onde dormir e acabamos por dormir pelas ruas”, desabafa.
Conforme as pessoas acabam as suas refeições vão parando para escutar Alejandro conversar com a reportagem. Apesar de todas as dificuldades, algo em sua voz e gestos remete a uma dignidade que ainda não foi perdida. Em um tom politizado, o jovem venezuelano afirma que queria mesmo era estar em seu país.
“Eu digo ao presidente Maduro que aceite a realidade em que nos encontramos porque não temos bem-estar em nenhum outro país. Deixamos nossas casas e emigramos porque há esse governo ruim, não há matéria-prima, não tem alimentação, não há nada que reivindicamos. Aqui, nossas crianças não podem estudar porque não temos como comprar os uniformes e os materiais escolares. Oxalá o presidente possa nos escutar e deixar entrar as ajudas humanitárias de todos os países, não porque estariam interessados no petróleo como ele pensa, mas porque nos ajudam de coração. Ele tem o coração corrompido e quer fazer isso com todos nós venezuelanos”, diz aliviado.
Acordo de Paz
A emergência migratória agrava-se em um momento muito delicado para a Colômbia. O país trabalha para consolidar o Acordo de Paz assinado em 2016 entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). A desmobilização dos territórios das FARC trouxe à tona terras que ficaram abandonadas por anos a fio.
Henri Bitu, 65 anos, voltou a cultivar mamão e feijão em um terreno arrendado pela cooperativa de pequenos produtores da qual faz parte. As terras, em meio às montanhas que delimitam a fronteira natural entre a Colômbia e a Venezuela, eram local de passagem de grupos paramilitares e guerrilheiros.
“Tinha muito medo de vir para a roça porque poderiam nos acusar de algo. Hoje, durmo sozinho aqui, já não tenho mais medo e ninguém rouba. Posso ir até o povoado e ficar por lá quatro ou cinco dias e quando volto tudo está no lugar”, afirma.
Outro colega de cooperativa, Fidelio Medina Jimenez, 70 anos, prepara a terra para as futuras mudas de mamão. Ele conta que cerca de 90% de todos os seus ganhos vão para pagar o aluguel do terreno. “Nós não temos terra, precisamos do nosso pedacinho de terra e de ajuda para vender a nossa produção”, lamenta.
Enquanto a situação das terras não se resolve, a FAO atua para mitigar as despesas dos pequenos agricultores. “Estamos trabalhando para ajudá-los a estabelecer novos acordos comerciais para aumentar as vendas. A médio e longo prazo eles poderão, por meio de linhas de crédito específicas, financiar a compra das próprias terras”, aposta Julia Montezuma, coordenadora de território da FAO em La Guajira.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Colômbia apresenta altos índices de concentração de terras e de subutilização de áreas para práticas agrícolas: 1,1% são proprietários de 52,2% das terras e dos 21,5 milhões de hectares cultiváveis apenas 4,1 milhões são utilizados para a agricultura.
Esses números confirmam o ponto nevrálgico que levou a décadas de conflito armado, encerrados oficialmente com a assinatura do Acordo de Paz. Os anos de guerra civil fizeram com que mais de 7 milhões de pessoas tivessem que se deslocar. Um número que coloca a Colômbia à frente da Síria no volume de deslocados internos. O Acordo de Paz prevê a Reforma Rural Integral, um processo que ainda requer muitos anos para solucionar o acesso às terras que atualmente se encontram em uma situação jurídica transitória.
“Um dos principais problemas da Colômbia é a iniquidade que é refletida não só na renda da população, mas também na distribuição da terra. É um problema que se arrasta por décadas, e a ideia é ver como podemos avançar nos processos de formalização e compra de terras para a redistribuição para a agricultura familiar. A FAO e o governo colombiano estão dispostos a promover a conciliação pacífica para a questão da terra”, diz Alan Bojanic, representante da FAO para a Colômbia.
A norma que guia o trabalho da FAO na distribuição de terras está descrita nas Diretrizes Voluntárias de Acesso à Terra, um acordo assinado pelos países membros da organização no contexto da segurança alimentar em vigor há uma década.
“Na América Latina, a diretriz é respeitar o direito tradicional do acesso e da posse da terra aos povos originários, aos pequenos produtores e impedir a concentração de terras por compra ou por ocupação, além de uma série de outras regras de uso e tenência da terra. Este trabalho tem sido reconhecido pelos governos por ser menos conflitivo do que aquele processo tradicional de simplesmente desapropriar e distribuir terras. Não que isso não seja necessário, ainda acho que em muitos casos a desapropriação fundiária seja o único caminho, mas hoje há uma série de outras técnicas que aplicamos com bons resultados e que igualmente permitem aumentar o acesso à terra aos pequenos produtores”, pondera o diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva.
Cultivo de coca
A reconciliação agrária na Colômbia encontra um grande obstáculo nos cultivos ilegais. As plantações de coca voltaram a aumentar após atingirem uma área mínima de 50 mil hectares. Atualmente, ocupam mais de 200 mil hectares, inclusive com cultivos dentro de parques nacionais. Entre os principais fatores que impedem a transição para cultivos legais está a alta resistência da planta de coca a pragas e condições climáticas adversas, além do fato de produzir até três colheitas ao ano.
Bojanic explica que a destruição de cultivos ilegais cabe ao Escritório das Nações Unidas contra às Drogas e o Crime (UNODC), em parceria com agentes do governo colombiano.
“O governo está fazendo um grande esforço para a redução manual das plantações de coca, evitando o uso de herbicidas que ameaçam a saúde. É um trabalho lento, caro e de altíssimo risco porque muitas zonas de coca são protegidas por minas terrestres. A FAO entra depois com sugestões de novos cultivos aos produtores que se encontram em situação precária e necessitam de orientação para iniciar uma nova produção”, conta.
Orçamento em risco
A maior parte do orçamento da FAO na Colômbia é assegurada pelo governo de Iván Duque Márquez. Contudo, países como Brasil e Suécia também financiam uma parte da verba que é utilizada nos programas de resiliência nas comunidades Wayuu. Para o PMA, o maior doador são os Estados Unidos, que até junho haviam contribuído com US$ 2,7 bilhões para a segurança alimentar em nível global – quase o mesmo valor investido pelos EUA em missões de paz.
Carlo Scaramella, diretor do PMA na Colômbia, revela que o orçamento do programa no país para 2019 é de US$ 75 milhões, mas que até agora somente 50% do valor foi arrecadado. Para continuar o trabalho de assistência humanitária, o diretor faz um apelo aos doadores, sobretudo à União Europeia.
“A Colômbia não recebe o apoio que deveria da Europa pelo grande trabalho de acolhida que está realizando. É um modelo de acolhida para o mundo e neste sentido deveria ser apoiado por mais países, a comunidade internacional deveria ser mais generosa. Neste momento, assegurar a assistência humanitária para um país como a Colômbia significa garantir também a estabilidade do Estado”, conclui Scaramella.
* Rafael Belincanta viajou a convite do Programa Mundial de Alimentação das Nações Unidas