Após quase 40 anos fechada, a biblioteca da Casa do Povo, espaço de cultura e resistência judaica na região central de São Paulo, será reaberta hoje (11). O local foi fundado em 1946, no bairro do Bom Retiro, por imigrantes e refugiados vindos da Europa Oriental. Grande parte dos livros que formam o acervo do centro cultural também vieram nessa época, muitos em ídiche, língua próxima do alemão, mas que usa o alfabeto hebraico.
São cerca de 10 mil livros que voltam a ser lidos e manuseados. Uma coleção que foi se formando ao longo do tempo, pelas doações da comunidade e incorporação de acervos pessoais e de outras instituições. Além disso, há o material que vem sendo trazido pelos coletivos que usam o espaço, atualmente são 25 grupos que desenvolvem as mais diversas atividades, como ateliê de costura manual, escola de jornalismo para jovens periféricos, coral em ídiche, laboratório de publicações e artistas de diversas linguagens.
Núcleo de memória
“Muitas gerações passaram pela casa, essas gerações não estão mais vivas, mas os livros estão. Os livros são um núcleo de memória da casa”, enfatiza a curadora da Casa do Povo, Marília Loureiro. Nessa história, o espaço alternou momentos vibrantes com momentos de esvaziamento. No final da década de 1970 e início dos anos 1980, a casa passou por um período que o atual diretor, Benjamin Seroussi, classifica como “decadência”. Em 1977, o local deixou de abrigar o Teatro Popular do Sesi. Pouco tempo depois, em 1981, a escola israelita que funcionava no prédio foi fechada, diminuindo o fluxo do centro. Foi nesse processo que a biblioteca acabou fechada.
Foi em 2017, na esteira de um processo de reocupação do espaço iniciado em 2012, que começou o trabalho de reativação da biblioteca. O centro obteve ainda apoio financeiro do Programa de Ação Cultural da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo. Foi criado então um grupo para pensar em não só como disponibilizar o acervo, mas fazer com que fosse utilizado pela comunidade.
Publicações em índiche
O projeto Arquivo Vivo buscou então quatro bibliotecas que tinham características que inspiraram a formatação da proposta para a Casa do Povo. A partir da pesquisa com o Arquivo Histórico Judaico foi possível entender como trabalhar com a vasta coleção de livros em ídiche, língua pouco falada, apesar de ainda ser usada por parte da comunidade do Bom Retiro, bairro marcado pela imigração judaica.
São publicações que vão desde os livros infantis, passam por disciplinas como história e política, e incluem literatura universal, como Dom Quixote. Entre esses livros, estão algumas das obras do Prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer, que escrevia somente em ídiche, apesar de viver nos Estados Unidos. Assim, a coleção busca ser um fator motivador de estudos e aprendizado dessa língua. “Normalmente o livro é para alguém que já sabe ler. Mas e se a gente inverter? Ter um livro que cria o seu próprio leitor”, explica Benjamin sobre a proposta.
Flexibilidade e integração de acervos
Para entender as estratégias de entrosamento com o público local, o grupo de trabalho se dedicou ainda a observar a biblioteca do Sesc Bom Retiro, que fica no mesmo território. Do Centro Cultural São Paulo, a ideia foi trazer a experiência de um espaço fortemente utilizado como local de encontro e estudos. O grupo visitou ainda uma biblioteca do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) para incorporar a técnica sobre montar e desmontar um acervo, característica importante para integrar a coleção às atividades que já eram desenvolvidas na Casa do Povo.
Com essa ideia, foi desenhado um mobiliário que foge ao padrão tradicional de apenas estantes fixas. Há prateleiras que podem ser encaixadas de diferentes formas, caixas que podem ser instaladas e desinstaladas, e um carrinho que ajuda a movimentar os materiais pelo espaço. “A gente queria entender como essa coisa poderia abrir, fechar. Uma parte a mostra, outra guardada. Como mesclar esses acervos”, comenta o diretor ao lembrar que existem coleções muito diferentes dentro do conjunto da biblioteca.
Além dos livros
Além dos livros propriamente ditos, há arquivos doados pelos antigos associados da casa e um acervo de modelagem, com projetos de roupas, muitos de estilistas renomados. Os modelos podem ser usados como consulta para que os frequentadores costurem as próprias peças. Em uma sala que se integra a nova biblioteca existe um pequeno parque gráfico, onde podem ser montadas novas publicações.
O desenho adaptado dos móveis permite, segundo Marília, que essas diferentes linguagens, materiais e momentos históricos possam ser associados em várias configurações, valorizando o conhecimento construído pelos grupos que usam o espaço “A gente pode juntar essas tipologias e criar histórias comuns entre esses grupos. A gente percebeu que tinham várias bibliotecas na casa e não tinha porque pensar só na biblioteca institucional”, acrescenta a curadora.
Edição: Maria Claudia