Para celebrar os 29 anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lembrados hoje (13), a Fundação Casa de São Paulo convidou o rapper Thaide para conversar com adolescentes internados provisoriamente na unidade Rio Tocantins, no Brás, centro da capital paulista.
Com olhos e ouvidos atentos, os 66 internos da unidade escutaram Thaide contando sua história de vida e sobre como se tornou um dos pioneiros do rap brasileiro, além de manter uma carreira também como apresentador e ator. O objetivo é mostrar aos jovens que, apesar das adversidades, ainda há possibilidade de escolher outros caminhos.
Sentados em uma das salas da unidade, os adolescentes escutaram o rapper contando que tem origem humilde e que foi criado pela avó, chegando a pedir esmolas nas ruas da capital. “Meu passado de infância e de adolescência não foram fáceis”, disse.
Thaide falou ainda sobre uma vez em que tentou assaltar uma mulher, quando percebeu que ela também não tinha nada, somente alguns papeis e uma marmita. Segundo ele, essa foi a sua única tentativa no crime. “Aquilo foi o que me disse para eu tentar ganhar minha vida de outra maneira. E eu não fiz mais isso. Passei necessidade, mas não fiz isso de novo”.
Depois de compartilhar histórias, o músico deixou os jovens falarem. Os internos questionaram, por exemplo, se o rapper ele vê futuro para a vida deles. “Eu enxergo muita coisa boa [em vocês], mas, infelizmente, muita gente só vê coisa ruim. Vocês têm que prestar atenção em vocês. Deixe esse lado ruim. Deixe o outro lado, o bom, aflorar”, falou.
A atividade
Segundo Jairo Silva Cavalcante, diretor do centro Rio Tocantins, a atividade desenvolvida na tarde de sexta-feira, véspera da celebração do aniversário do ECA, foi pensada para “mostrar a eles [internos] que podem ser algo a mais do que são e sensibilizá-los em relação a uma vida diferente da que eles têm adotado até então”.
O convite ao rapper, disse Cavalcante, foi pensado porque a música “é uma forma deles [os internos] externalizarem, de se identificarem como sujeitos”. “Acho que eles se identificaram realmente com o Thaide, que é da mesma comunidade, da periferia, que utiliza uma linguagem adequada e que chama a atenção deles”, falou.
Internação provisória
A internação provisória é uma medida cautelar, prevista no ECA, e que corresponde ao período de até 45 dias em que o adolescente autor de ato infracional aguarda a sentença da Justiça da Infância e da Juventude.
A maioria dos jovens internos da Fundação Casa é formado por homens que cometeram atos infracionais ligados ao tráfico, seguido por roubo. Na unidade Rio Tocantins, a maior parte deles é reincidente. Os jovens têm entre 12 e 17 anos, podendo permanecer no local até completarem 21 anos.
Os internos estão inseridos em medidas socioeducativas de privação de liberdade (internação) e semiliberdade, determinadas pelo Poder Judiciário e aplicadas de acordo com o ato infracional e a idade dos adolescentes.
Identificação
Ao final da conversa com Thaide, a reportagem falou com alguns dos internos. Todos eles disseram que a conversa com o músico falou “ao coração”, trazendo identificação com suas próprias histórias.
Eduardo*, 17 anos, sentou bem perto do rapper e foi um dos que mais fez perguntas. Ele chegou à Fundação Casa após cometer atos infracionais relacionados ao tráfico. O jovem contou que já tinha visto Thaide antes, se apresentando em alguns programas de TV, e que tinha vontade de seguir a mesma carreira. “Se eu tivesse oportunidade, pretendia sim”, falou o jovem, que considerou a conversa com o músico muito importante. “Me identifiquei com algumas coisas. Referente à família dele e às dificuldades que passou, me identifiquei um pouco. E só no meio ele conseguiu dar a volta por cima e isso é um aprendizado que podemos levar para nós mesmos”.
Alex*, 17 anos, que também teve envolvimento com o tráfico e é reincidente, diz esperar um futuro melhor para si. “Pretendo fazer cursos, terminar meus estudos, fazer minha faculdade de administração. Quero ser gerente de banco ou de loja”, falou ele, que também se viu muito representado na fala de Thaide. “As dificuldades dele [do rapper] têm muitas semelhanças com as dificuldades que passei lá fora. E eu gosto muito das músicas dele. Inclusive, minha mãe escuta muito as músicas dele, como aquela Que tempo bom”, contou.
Antonio*, 18 anos, chegou à Fundação Casa por roubo. “Via os outros com boa vida e com condições e queria ser igual a eles. O que o Thaide falou para a gente teve sentido: nós queremos nos mostrar aos outros, mas não mostramos o que somos de verdade”.
“Também teve o que ele falou da avó dele. Foi a minha vó quem me criou. O que ele falou me cortou o coração. Eu quase chorei. Ele soube usar a cabeça, ele era mais forte. Eu não. Não pensei muito na minha família. Vejo minha vó vindo aqui várias vezes na visita, chorando. Mas eu quero sair e mostrar a ela que eu mudei, que sou nova pessoa e ver o sorriso dela”, falou ele, que pensa em fazer engenharia civil quando deixar o local.
Elias*, 16 anos, cumpre medida socioeducativa por latrocínio. “Foi muito gratificante ter escutado um pouco da história dele, que nos incentiva. Ele falou muita coisa que tocou nosso coração”, disse, ao citar que pretende sair, “enfrentar as barreiras e encontrar um trabalho”. “Quero estudar, fazer cursos. Já trabalhei em pizzaria. Tenho facilidade em fornear. E, embaixo da minha casa, tem um salão. Quero abrir uma pizzaria e dar alegria para a minha mãe”.
Já Cícero*, 17 anos, que cumpre medida por roubo de carro, não conhecia o rapper. “Ele falou uma coisa que me deixou bastante comovido: que a gente tem que acreditar na gente mesmo para conseguir seguir em frente. E isso tem sentido porque meus pais já me falaram isso. Teve muita coerência com a minha família”, contou. “E. quando sair daqui. quero fazer um curso de mecânica”.
Para Thaide, as perguntas feitas pelos jovens mostram que eles “estão preocupados, de alguma forma, com eles mesmos e com os caminhos que vão trilhar”. “Será que eles vão ter oportunidades de chegar até à esquina, de dobrar a esquina? Essa foi a preocupação que eu tive na minha adolescência. Sou curioso e sabia que não ia cair aqui porque queria chegar até aquela outra esquina. E eles também podem chegar em todas as esquinas do mundo”, falou.
* O nome de todos os adolescentes citados na reportagem foram trocados para que sejam preservadas suas identidades.
Edição: Paula Laboissière