Dois temas “de sociedade”, como dizem os franceses, chamaram a atenção esta semana no país da Liberté, Égalité e Fraternité. O primeiro foi uma tribuna defendendo o direito à inseminação artificial aos casais de lésbicas. O segundo foi a decisão do governo de manter as restrições aos homossexuais que desejam ser doadores de sangue.
Na noite dessa quinta-feira (11) a Assembleia Nacional francesa decidiu, por 29 votos contra 23, manter o statu quo sobre o tratamento diferenciado em caso de doação de sangue feita por heterossexuais e homossexuais. Desde 1983, os gays são podem doar sangue no país, uma medida de “precaução” herdada do auge da epidemia de HIV nos anos 1980. Mas em 2016 a regra mudou e os homossexuais passaram a ser aceitos na fila dos doadores de sangue. Porém, com uma condição: a prática só é possível para homens que “não tiveram relações homossexuais durante 12 meses”, segundo explica o texto oficial.
A exigência foi imediatamente criticada, vista como uma forma de discriminação velada. Afinal, no caso dos heterossexuais, a única exceção é para os doadores potenciais que tenham mantido relações sexuais com diferentes parceiros nos últimos quatro meses.
Desde que a medida foi implementada, o debate sobre esse tratamento diferenciando volta à tona frequentemente. A própria ministra francesa da Saúde, Agnès Buzyn, disse essa semana que gostaria de acabar com essa “cláusula de abstinência” para os doadores gays. “Mas não podemos adotar uma lei de critérios de seleção que nos leve a correr um risco no futuro em caso de um novo agente patógeno ou de uma epidemia”, tentou justificar a ministra. Resultado, os gays continuam excluídos da fila dos doadores enquanto os bancos de sangue da França fazem campanha alertando para a baixa dos estoques do material vital em seus hospitais.
“Nossas famílias não têm menos valor que as suas”
Dois dias antes do voto na Assembleia, 90 mulheres assinaram uma tribuna contestando outra medida apontada como discriminatória: a proibição da inseminação artificial para casais de lésbicas. O governo prepara um projeto de lei sobre questões de bioética no qual um dos temas é abrir a possibilidade da procriação medicamente assistida (PMA) para todas as mulheres – incluindo as homossexuais que, atualmente, recorrem a laboratórios no exterior quando querem ter filhos biológicos.
O texto publicado no site do canal Franceinfo é assinado por mães, a maioria lésbicas, que conseguiram engravidar graças à inseminação artificial feita no exterior. A lista conta com uma apresentadora de telejornal, uma ex-jogadora de futebol, uma deputada, ou ainda diretoras de cinema, além de outras dezenas de cidadãs menos conhecidas, que tiveram que cruzar as fronteiras para realizar o sonho da maternidade.
Elas contestam na tribuna o fato de que muitos “especialistas” são ouvidos pela mídia, mas que os casais de lésbicas que já tiveram filhos foram excluídos do debate sobre a lei de bioética, inclusive pela imprensa. “Caros jornalistas e editores, quantas lésbicas vocês entrevistaram para cada cinco opositores à PMA que dão suas opiniões em suas matérias?”, questionam as signatárias. “Não se preocupem como nossos filhos. Eles foram desejados, esperados por muito tempo e são amados. Nossas famílias não têm menos valor que as suas”, declaram.
O tema divide na França e os grupos mais conservadores temem que, na esteira da inseminação artificial para as lésbicas, o próximo passo seria exigir o direito à paternidade aos casais de homens por meio da gestação de substituição, conhecida no passado no Brasil como “barriga de aluguel” (GPA na França). Ao contrário da legislação brasileira, que autoriza o dispositivo de Útero de Substituição (ou Barriga Solidária), a prática é totalmente proibida na França e foi um dos principais freios durante o debate sobre o casamento gay no país em 2013.
Tanto a discussão sobre a doação de sangue quanto o acesso à inseminação artificial para todos chamam a atenção para a questão da discriminação no país dos direitos humanos, onde igualdade faz parte das divisas, junto com liberdade e fraternidade. Os dois ataques homofóbicos registrados em menos de um mês nas ruas de Paris, além das inúmeras agressões recentes de pessoas trans apontam que a questão da homofobia ainda está longe de ser resolvida, inclusive na Europa.