Em um espaço de dois anos, a gaúcha Fernanda Staniscuaski enfrentou duas transformações bastante expressivas em sua vida. Doutora em Biologia Celular e Molecular, ela fechava, em 2011, um contrato para integrar o quadro docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), após aprovação no rigoroso processo seletivo feito para esse fim em instituições públicas de ensino superior. No início de 2013, nascia seu primeiro filho, fato que, como sua nova fase profissional, também trazia o inaudito para seu cotidiano.
A convocação da UFRGS coincidiu com o encerramento de seu pós-doutorado em Biofísica e, mesmo com esse patamar já atingido, a bióloga, que, com a chegada da criança, tinha novos afazeres, não imaginava que teria de reduzir a marcha a quase zero, durante os seis meses de licença-maternidade. Uma semana depois do parto, ela, um pouco frustrada e abatida pelo cansaço, compreendeu que, mesmo contra sua vontade, produziria menos artigos científicos e permaneceria por um tempo mais curto no laboratório.
De repente, Fernanda, que anteriormente já havia conseguido obter verbas para seus projetos acadêmicos, defrontava-se com diversas recusas de agências de fomento de pesquisa. A justificativa apresentada pelos órgãos, de que ela não estava produzindo o suficiente para merecer o aporte financeiro, era, para ela, produto de discriminação de gênero, uma vez que não consideravam as especificidades da maternidade.
Constatando uma face da violência simbólica contra mulheres, que em outras circunstâncias ainda se perpetua dentro das universidades, como em trotes, na forma de assédio sexual, Fernanda usou o Facebook para compartilhar seu sentimento diante daquilo. Após perceber que a situação pouco mudava com a vinda do segundo filho e, inclusive, perder, com a correria da rotina, o prazo de envio da documentação de um edital que garantiria recursos para seus projetos, resolveu partir para uma estratégica prática de sensibilização. Ela, então, organizou um levantamento do perfil das pesquisadoras brasileiras que também são mães e brigam por igualdade e isonomia nos corredores acadêmicos.
O questionário do projeto, que recebeu o nome Parent in Science – Pai na Ciência, em inglês, que, segundo Fernanda, foi escolhido por incluir tanto mães como pais pesquisadores -, foi respondido, em um primeiro momento, por 1.573 pesquisadores. Desse total, destacavam-se alguns dados: 305 eram alunas de pós-graduação e 41 pesquisadoras haviam feito pós-doutorado. Além das mulheres, 136 dos participantes eram pesquisadores pais.
A amostra foi composta majoritariamente por pesquisadores da região sudeste (35%) e do sul (33%). As regiões centro-oeste, nordeste e norte corresponderam, respectivamente, a 14%, 13% e 5% das respostas enviadas. O resultado, divulgado por Fernanda em janeiro deste ano, será atualizado no 2º Simpósio Brasileiro sobre Maternidade e Ciência, que terá início na próxima quinta-feira (16), em Porto Alegre. O Parent in Science é representado, hoje, por seis pesquisadoras mulheres e um pesquisador homem, que pretendem concluir, até o final do ano, um artigo com o detalhamento das informações coletadas, que envolvem agora cerca de 2.500 participantes.
Das quase 1.500 mulheres consultadas, 1.120 (78%) afirmaram ser mães. No Instituto de Biociências da UFRGS, ao qual Fernanda está vinculada, a taxa foi de 75%. Na amostragem geral, a maioria das mulheres (56,2%) disse ter apenas um filho, ao passo que 38,55% afirmaram ter dois, 4,67% ter três e apenas 0,5% ter uma família de quatro filhos.
“Surgiu dessa minha experiência, porque a gente não viu ninguém falando a respeito e queria entender. Tive amigas próximas passando pela mesma situação, mas não existia nada [que compilasse os dados]. A gente começou a estudar, notou que não tinha números para fazer qualquer inferência. Havia muitos trabalhos das áreas socais aplicadas sobre maternidade, mas não nesse sentido”, explica Fernanda.
A professora comenta que a iniciativa tem como principal objetivo mostrar a realidade das pesquisadoras que têm de conciliar os deveres que surgem com a maternidade com as da academia, além de subsidiar o governo na estruturação de políticas públicas que deem uma resposta a isso. “É a língua por meio da qual a gente vai conseguir conversar com as agências de fomento.”
Como Fernanda, grande parte das mulheres que preencheram o formulário tornou-se mãe quando ainda começava sua carreira na instituição de ensino. Com o levantamento feito, descobriu-se que que a maioria das pesquisadoras vivencia a maternidade quando tem entre, em média, 2,8 anos de casa e 32 anos de idade. Um número muito pequeno delas passa pela experiência quando já completou sete anos ou mais de contrato.
Mesmo fazendo parte dos 6% das mães pesquisadoras que dispõem de uma babá para ajudá-las, Fernanda teve de se adaptar a uma nova dinâmica, priorizando as obrigações que tem como professora, em detrimento da presença constante no laboratório.
“A primeira coisa foi ter que acabar deixando coisas de laboratório de lado e cumprir casos relacionados à atividade de docente. A outra coisa foi conseguir fazer algo em casa. Não acho mais saudável fazer, mesmo que quisesse, porque às 18h eles [os filhos] estão em casa e primeiro que quero estar com eles, e, em segundo lugar, eles também demandam tempo.”
Virando noites
Na palestra ministrada em janeiro, a bióloga ressaltou que o nascimento dos filhos das pesquisadoras coincide com o pico de suas produções acadêmicas e que somente depois de três ou quatro anos elas conseguem retomar o ritmo que tinham. A pesquisa também mostrou que mais da metade delas (54%) são as únicas responsáveis pela criança, confirmando estatísticas trazidas por sondagens de âmbito nacional, elaboradas pelo governo federal. Em apenas 1% dos casos, outros membros da família dão esse suporte, em 34% ambos pais dividem a responsabilidade e em 5% isso ocorre, mas cada um fica por um tempo limitado.
Um quinto (20%) das pesquisadoras afirmou conseguir executar tarefas em casa, desde que sejam simples, como fazer uma ligação telefônica ou escrever um e-mail, sem ver a possibilidade de escreverem um artigo ou elaborarem um pedido de bolsa, e 21% disseram que só são capazes de fazer isso depois que os filhos dormem, de madrugada. Ao todo, 14% responderam que seu desempenho não é afetado por estar trabalhando em casa, na companhia das crianças.
Observou-se que 4% das participantes reconheceram que, diante das dificuldades, já decidiram não tentar reunir a documentação necessária para editais de fomento à pesquisa, porque não teriam condições de entregá-la a tempo. Ademais, 56% assumiram ter perdido, como Fernanda, o prazo de submissão dos documentos requisitados.
Seis em cada dez pesquisadoras (59%) consideram negativo o impacto da maternidade na progressão de sua carreira, 22% consideram-no bastante negativo e 12% afirmam que não teve nenhum efeito. Na outra ponta, 5% avaliaram-no como positivo e 2% como muito positivo.
Fernanda afirmou que, embora não tenha experimentado isso, soube de casos de membros de bancas de seleção que indagaram se a pesquisadora pretendia ter filhos ou se casar, insinuando que isso seria um obstáculo em sua vida acadêmica e, portanto, um critério para descartá-la para a vaga, se respondesse afirmativamente. Muitas vezes, acontece ainda, segundo testemunhou, de as pesquisadoras terem direito à licença-maternidade e não a solicitarem, por medo de perder a bolsa. Outra prática frequente, de acordo com a bióloga, é penalizá-las com escalas complicadas, pedindo que ministrem aulas que começam muito cedo ou muito tarde, o que as força a procurar alguém com quem possam deixar os filhos.
Ela explicou que a sensibilização visada pelo projeto também se estende a todos, inclusive aos homens. “Uma das coisas importantes do projeto, das nossas vitorias, é levantar essa discussão. Em um dos seminários, um professor homem que assistia disse que de fato nunca pensou no que eu tava falando ali, e ele é uma pessoa que conheço e sei o tanto que refletia sobre tudo. Às vezes, a gente tem que falar as coisas que parecem óbvias.”
Este ano, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico passou a disponibilizar um campo no qual a pesquisadora ou o pesquisador pode informar a data de nascimento dos filhos no currículo lattes, que é adotado como o oficial no meio acadêmico. O preenchimento é facultativo e se encontra na aba de Dados Pessoais.
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Edição: Valéria Aguiar