Se, por um lado, a rivalidade militar entre Brasil e Argentina diminuiu desde 1985, quando os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín trocaram a histórica desconfiança por uma integração de confiança, por outro lado, a rivalidade no futebol entre os dois países só aumentou nos últimos anos, incentivada pela imprensa e por marcas comerciais.
A etimologia da palavra ‘rivalidade’ vem de rio: aqueles que dividem o direito comum sobre uma corrente d’água. E, no caso de Brasil e Argentina, esse foi justamente o começo de toda a disputa.
Em 22 de janeiro de 1680, o então governador da Capitania Real do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, por ordem do Império de Portugal, fundou a Colônia do Santíssimo Sacramento, hoje Colônia do Sacramento, na margem uruguaia do rio da Prata. A presença portuguesa no Rio da Prata iniciou uma disputa territorial e comercial que levou Brasil e a Argentina, recém-independentes, a uma guerra entre 1825 e 1828 pelo que o Império do Brazil chamava de província Cisplatina, atual Uruguai.
Desde então, os dois países rivalizaram na disputa pela hegemonia na América do Sul. A desconfiança militar e diplomática foi uma constante ao longo de três séculos, promovendo, inclusive, uma secreta corrida nuclear. Custa acreditar, mas Brasil contra Argentina era um das principais hipóteses de guerra nos anos 70 e foi a única relação que trocou a possibilidade de ogivas para se tornar uma integração bilateral, núcleo inicial do Mercosul.
A ameaça militar de outrora saiu dos campos de batalha para os de futebol e até mesmo os governos de ambos os países quando pregam a integração plena fazem uma exceção: o futebol.
O sociólogo argentino Pablo Alabarces é provavelmente quem mais estudou o assunto. Escreveu 14 livros, a maioria sobre a influência do futebol na formação da identidade argentina e latino-americana. Foi Alabarces quem cunhou a célebre frase que resume a relação Brasil x Argentina sob a fina camada de rivalidade: “Os argentinos odeiam amar o Brasil e os brasileiros amam odiar a Argentina”.
“Mas poderia ser ‘os argentinos odeiam amar os brasileiros e os brasileiros amam odiar os argentinos’ porque a frase significa que nós argentinos nos sentimos rivais, mas que, na verdade, ficamos muito zangados porque amamos os brasileiros. Já os brasileiros desfrutariam mais da rivalidade porque na realidade amariam nos odiar”, explica à RFI Pablo Alabarces, um dos fundadores da sociologia do esporte na América Latina.
Brasil 1970
É muito comum encontrar argentinos acima de 50 anos que saibam a escalação completa da seleção brasileira de 1970. Foram os jogadores brasileiros que ensinaram o “jogo bonito” aos argentinos, expressão em português até hoje usada no futebol argentino. O próprio Waldir Pereira, o Didi, chegou a ser técnico do River Plate, onde pregou o estilo do “jogo bonito”.
“Argentinos e brasileiros se gabam de uma rivalidade no futebol que se baseia na profunda admiração que os amantes do futebol têm pela seleção de Pelé de 1970. Para o imaginário futebolístico argentino, a melhor seleção de todos os tempos foi a do Brasil de 70. Não foi uma seleção argentina, mas uma brasileira”, indica Pablo Alabarces.
Colaborou para a rivalidade o fato de grandes jogadores de futebol, de ambos os lados, terem sido os maiores do mundo nos seus tempos. Os camisas 10 de um lado e de outro escreveram a história do futebol mundial: Pelé, Zico, Neymar, Maradona e Messi. Com oito gols em dez jogos contra a Argentina, Pelé é até hoje o maior goleador do clássico.
Campo de batalha
A rivalidade no futebol começou quando o próprio esporte dava os seus primeiros passos. Em 1912, num amistoso que não entrou nas estatísticas, o ex-presidente argentino Julio Argentino Roca foi ao Brasil durante as comemorações do 7 de setembro. Com ele, um combinado de jogadores argentinos enfrentaram os brasileiros no estádio do Fluminense nas Laranjeiras. No intervalo do jogo, quando os argentinos já ganhavam por 3 a 0, Julio Roca pediu aos seus jogadores que tivessem a sensibilidade de entender que o Brasil comemorava a sua data pátria e que deveriam entregar o jogo. A rivalidade falou mais alto: Argentina 5 a 0.
Em 20 de setembro de 1914, os dois países se enfrentaram pela primeira vez oficialmente. Foi no antigo campo do clube Gimnasia y Esgrima em Buenos Aires. Era a Taça Julio Roca, oferecida pelo general Roca.
A disputa pela taça não aconteceu devido ao mau tempo que atrasou a chegada do navio com a seleção brasileira. Os brasileiros chegaram no dia 20 de setembro de manhã e, naquele dia, só jogaram um amistoso, perdendo para a Argentina por 3 a 0. Depois de uma semana em Buenos Aires, a seleção brasileira disputaria a Taça Roca contra a Argentina. Desta vez, vitória do Brasil por 1 a 0. Foi a primeira Taça da seleção brasileira.
Macacos em Buenos Aires
Em 1920, num amistoso em Buenos Aires, o jornal argentino Crítica retratou os jogadores brasileiros como macacos. “Monos (macacos) em Buenos Aires”, intitulou com uma charge. Revoltados, os quatro jogadores negros da seleção brasileira recusaram-se a entrar em campo. A Argentina aceitou entrar em campo com apenas sete jogadores de cada lado. O insólito jogo foi vencido pelos argentinos por 3 a 1.
Esse episódio inaugurou o papel da imprensa no acirramento da rivalidade e teria uma reedição, em 1996, através do jornal desportivo Olé. Durante os Jogos Olímpicos em Atlanta, a Argentina chegou à final e enfrentaria o vencedor de Brasil x Nigéria. O jornal que tinha sido lançado naquele mesmo ano intitulou na sua capa: “Que venham os macacos” numa referência tanto ao Brasil quanto à Nigéria. Naquela mesma semana, aliás, um brasileiro seria morto em Buenos Aires por discutir sobre futebol.
Nos últimos anos, a rivalidade no futebol aumentou em grande parte incentivada pela imprensa especializada e pelos comerciais de TV para os quais “nada melhor para um brasileiro do que comemorar uma derrota argentina”. “Eu acredito que a rivalidade, nos últimos anos, aumentou devido ao jornalismo desportivo sensacionalista. Essa imprensa popular muito personificada no Lance e no Olé. São os principais responsáveis por esse aumento”, acusa Alabarces.
Pelé gay
Pablo Alabarces também relembra uma série de publicidades institucionais do Olé durante a Copa de 2014. Em uma delas, um jornalista argentino fazia perguntas insidiosas numa suposta coletiva de imprensa da seleção brasileira. O jornalista perguntava se era verdade que o Pelé tinha perdido a virgindade com um menino (fake news amplamente difundida entre os torcedores argentinos).
“Fui ao Rio em 2014, depois da Copa, para dar uma palestra sobre o famoso ‘Brasil, decime qué se siente’. Mostrei as pichações feitas pelos torcedores argentinos em Copacabana que diziam ‘Pelé Puto (Viado)’. Contei como, na Argentina, foi construído um folclore sexual a partir dessa velha anedota de que o Pelé teria perdido a virgindade com um garoto. A resposta dos meus colegas brasileiros foi muito risonha, dizendo que, para eles, o Pelé é o grande macho, aquele que teve as melhores mulheres do Brasil. Não havia nenhum tipo de folclore sexual possível”, recorda Alabarces, para quem “essa fantasiosa versão homossexual aplicada sobre o Pelé é uma clássica estratégia de inferiorização que os torcedores e o jornalismo popular desportivo argentino reproduzem.
Em 1978, depois da polêmica partida da Argentina contra o Peru por 6 a 0 num suposto acerto entre as ditaduras argentina e peruana para levar a Argentina à final e fazer o Brasil a disputar o terceiro lugar (outro episódio que contribuiu para a rivalidade), a cantiga da torcida argentina também apelava para a homossexualidade.
“A torcida cantava: ‘Todos já sabem que o Brasil está de luto. São todos negros, são todos putos’ (viados)”, descreve Alabarces. Num dos versos da recente “Brasil, decime qué se siente”, a homofobia volta à cena. A ideia de que o gol de Claudio Caniggia contra o Brasil na Copa de 1990 foi uma vacina.
“A vacina, na linguagem popular argentina, é a penetração anal”, diz Alabarces, quem, durante a Copa da Rússia, presenciou a mesma apelação. “Vi centenas de torcedores argentinos em torno da Praça Vermelha. De repente, aparece um núcleo pequeno de brasileiros. Não há conflitos, não há combate. Assim que os torcedores brasileiros começaram a cantar, os torcedores argentinos respondem: “Les metieron 7, les rompieron el ojete’ (meteram-lhes sete. Romperam-lhe o ânus). Novamente, a penetração anal como forma de domínio”, interpreta.
Em 2010, um comercial da Skol no Brasil colocava uma latinha de cerveja que, ao ser aberta, chamava um torcedor argentino de ‘maricón’. O Ministério Público Federal chegou a recomendar à AmBev, detentora da marca Skol, a suspensão da campanha publicitária. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) suspendeu o comercial.
Do ódio ao amor
Para Pablo Alabarces, no entanto, o europeísmo argentino com a sua percepção narcisista da realidade leva o argentino a amar o Brasil pela sua dose de exotismo. “O europeísmo argentino obriga a ver o tropicalismo brasileiro com profunda inveja. Esse eurocentrismo argentino diante de algo que classifica como inferior, mas que se ama como sedutor. Esse é um dos nós mais fortes da sedução brasileira sobre o imaginário argentino”, avalia.
“Aquilo que aparece como invejado é aquilo do qual se carece: sensualidade, erotismo, carnaval, negritude, dança, música, alegria. É uma lista de desejos do argentino. E o futebol brasileiro tem esse estereótipo da alegria, um futebol que dança, que não sofre, que se desfruta”, compara.
A descrição de Alabarces tem um paralelo no texto “Foot-ball Mulato” do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre em 1938. O texto inventa a democracia racial brasileira em torno de um futebol hibridado entre negro, branco e o índio com um jeito próprio de jogar bola.
“Essa democracia racial brasileira, no fundo, é o desejo do futebol argentino. Encontra-se na cultura e no futebol brasileiro aquilo que falta na cultura e no futebol argentino. Esse é o ponto que explica que os argentinos odeiam amar o Brasil. No ódio está a rivalidade, mas no amor está o desejo”, conclui Pablo Alabarces.