“Tem essa paz e calma interior de que você precisa quando atira”, observa Michele Meyenberger, enquanto o pesado som das armas de fogo ecoa pelo clube. Um magazine de munição para seu Sturmgewehr 90, um rifle semiautomático modificado utilizado pelo Exército suíço, repousa sobre a mesa enquanto ela olha o relógio, ciente de que em breve será sua vez no polígono de tiro.
A atiradora de 30 anos é uma de dezenas de proprietários de rifle locais que viajaram até a localidade de Märwil, na Suíça, para um festival de tiro, onde miram um alvo que parece impossivelmente pequeno, a 300 metros de distância, campo abaixo.
Como Meyenberger, muitos usam semiautomáticas, parte das quais eles tiveram permissão de manter após o serviço militar. De acordo com o resultado de um referendo a se realizar no próximo domingo (19/05), contudo, essas armas poderão ficar sujeitas a regulamentação rigorosa.
A votação definirá se o país deve ou não reformar suas leis relativas a armas, a fim de adaptá-las à emendas da diretriz armamentista da União Europeia (UE). Embora não integre o bloco, se o resultado for negativo a Suíça arrisca ser excluída do Espaço de Schengen – o sistema europeu de fronteiras abertas –, assim como do Tratado de Dublin, referente ao tratamento dado às solicitações de asilo e refúgio.
Segundo a nova legislação, ficam banidos certos tipos de semiautomáticas. A Suíça conseguiu isenção para os atiradores esportivos e os que mantiveram seus rifles do serviço militar. Esses devem obter licenças especiais e provar que são filiados a um clube de tiro ou praticam regularmente.
Segundo os proprietários locais, a diferença-chave está na forma como eles encaram suas armas.
“Os americanos têm suas armas para autodefesa, é um instrumento de proteção. Para nós, é uma peça de equipamento esportivo, a relação com a arma é completamente diferente”, diz Thomas, “ninguém acha que precisa atirar num assaltante com ela.”
Ele explica que há numerosas regras a que os proprietários estão sujeitos. Mesmo em eventos de fim de semana como o festival de tiro de Märwil, os participantes devem pegar a munição com o clube e devolver qualquer projétil não utilizado. No fim, cada bala é computada exatamente.
A exposição às armas de fogo também começa cedo: crianças de até dez anos de idade já participam de classes de tiro. No entanto recebem treinamento formal e são constantemente advertidas sobre as medidas de segurança. “Aqui eles estão sempre nos dizendo como é perigoso, e claro que há alguém vigiando e fiscalizando para assegurar que você está fazendo tudo certo”, relata Meyenberger.
O governo suíço e a maioria dos partidos no Parlamento são fortemente a favor de reformar as leis armamentistas, ressaltando que a UE estará menos inclinada a fazer uma exceção para a Suíça em meio aos tumultos do Brexit. No entanto, os que fazem campanha a favor da reforma parecem menos convencidos de que as novas leis serão boas para a Suíça do que preocupados com as consequências de não aceitá-las.
“Eu nunca teria apoiado essa lei, se os acordos de Schengen e Dublin não estivessem associados a elas”, comenta o parlamentar democrata-cristão Martin Candinas. “Mas quando se é parte de um grupo assim, é preciso engolir uma pílula amarga de vez em quando e aceitar que nem tudo pode ser como se quer.”
Para outros deputados, implementar controles de armas mais rigorosos na Suíça é tão importante quanto seguir integrando a área de Schengen. “Restringir a disponibilidade de armas salva vidas”, frisa a social-democrata Priska Seiler Graf. Apesar dos níveis relativamente baixos de violência armada, “cada pessoa morta por um rifle militar é uma demais”.
Enquetes recentes mostraram que muito mais mulheres do que homens são por controles mais rigorosos. Seiler Graf atribui isso aos casos de violência doméstica e ao fato de que elas são as vítimas mais prováveis de ameaças armadas. “Também acho que mentalidade de ‘defenda o seu território’, de que todo mundo tem o direito de se defender com uma arma, agrada muito menos às mulheres do que aos homens.”
“Lei desnecessária e inútil”
Num sábado chuvoso, algumas semanas antes do referendo, centenas de manifestantes trajando terno e jaqueta de atirador se reuniram na cidade de Winterthur para a assembleia anual dos delegados da Associação dos Atiradores Esportivos (SSV) da Suíça. Com mais de 130 mil membros ativos, ela é uma das maiores entidades do gênero no país, tendo se mostrado forte em rechaçar as medidas para controle de armas.
“Nós nos opomos a uma lei desnecessária e inútil, que só nos pune e restringe”, comentou à DW o presidente da SSV, Luca Filippini, segundo quem as regras da UE afetarão 80% dos membros da associação. Assim como diversos delegados na reunião, ele se preocupa que aceitar as regras europeias deixe a Suíça mais exposta a futuras reformas.
Uma provisão da diretriz da UE prevê que a legislação sobre armas seja revista em 2020 e, depois, a cada cinco anos. “A meta é reduzir o número de armas de posse particular, e não podemos aceitar isso”, reforçou Filippini.
Apesar de quase todos os delegados, que dirigem várias das principais organizações se tiro suíças, rejeitarem as novas reformas da UE, nem todos estão convencidos de que devam votar “não”.
“Ainda não me decidi completamente, embora seja um atirador esportivo”, comenta Alfred Duft, atuante no setor de tiro há 35 anos. “Para mim, Schengen é fundamentalmente mais importante. A tradição de tiro está lá, mas não se pode superestimá-la. A gente também tem que olhar para o futuro.”
Edição: Valéria Aguiar