O aborto é um tema polêmico e controverso no Brasil, onde é considerado crime em quase todas as situações.
Apesar de alguns avanços na legislação e na jurisprudência, que garantiram o direito ao aborto em casos de anencefalia, estupro e risco de vida para a gestante, ainda há muita resistência e pressão de setores conservadores da sociedade para impedir a ampliação desse direito.
Um desses setores é o campo jurídico católico, formado por associações, institutos, fundações e pessoas que se identificam com a religião católica e que usam o direito como instrumento de atuação política e social. Essas entidades e indivíduos se mobilizam nos tribunais, no legislativo, na mídia e na academia para defender os valores e os interesses da Igreja Católica, especialmente em relação ao aborto e outras questões de gênero e sexualidade.
Um estudo recente, intitulado “Cartografia dos Catolicismos Jurídicos”, mapeou 19 entidades jurídicas católicas que atuam no Brasil com esse perfil. O estudo foi realizado pelo Grupo de Pesquisa em Direito, Gênero e Identidade (GEDGI), vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e contou com o apoio da Fundação Ford.
O objetivo do estudo foi identificar quem são, como se organizam, o que defendem e como se articulam essas entidades, que têm influência sobre as decisões judiciais e as políticas públicas relacionadas ao aborto no país. O estudo também analisou as conexões dessas entidades com movimentos internacionais conservadores, que buscam frear os avanços dos direitos humanos das mulheres e das minorias sexuais e de gênero.
Entre as principais conclusões do estudo, destacam-se:
- Ativismo antiaborto de entidades católicas: As entidades jurídicas católicas se opõem à descriminalização do aborto em qualquer circunstância, inclusive nos casos já previstos em lei. Elas também contestam a legalidade e a legitimidade das normas técnicas do Ministério da Saúde que regulamentam o atendimento às mulheres que sofrem violência sexual ou que têm gravidez de risco. Essas entidades participam de ações judiciais, audiências públicas, consultas públicas, manifestações e campanhas contra o aborto. Algumas delas também oferecem assistência jurídica gratuita às mulheres que são processadas ou denunciadas por praticar aborto.
- Influência da família Gandra: Uma das famílias mais influentes no campo jurídico católico é a família Gandra, composta pelo jurista Ives Gandra Martins e seus filhos Angela Gandra Martins e Ives Gandra Martins Filho. Eles são membros de instituições católicas conservadoras, como o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) e a União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), e participam de debates, publicações e eventos contra o aborto e outras pautas progressistas. Ives Gandra Martins é considerado um dos maiores expoentes do direito constitucional no Brasil e tem grande prestígio entre os magistrados. Angela Gandra Martins é secretária nacional da Família no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ives Gandra Martins Filho é ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e já foi cotado para o Supremo Tribunal Federal (STF).
- Articulação com o governo Bolsonaro: Algumas entidades e pessoas ligadas ao campo jurídico católico integraram ou apoiaram o ex-presidente Bolsonaro, que tem uma agenda antiaborto. A deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ) é um exemplo. Ela é presidente da União Brasileira dos Juristas Católicos (UBRAJUC) e da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto. Ela também é autora de projetos de lei que visam restringir ainda mais o acesso ao aborto legal no Brasil, como o que propõe a criminalização do aborto em caso de anencefalia e o que proíbe o uso de recursos públicos para financiar organizações que defendem o aborto. Além disso, ela é uma das principais defensoras do ex-presidente Bolsonaro no Congresso Nacional e na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19.
- Conexão com movimentos internacionais: As entidades jurídicas católicas brasileiras também se conectam com organizações e iniciativas conservadoras de outros países, como a Ordo Iuris, da Polônia, e o Consenso de Genebra, promovido pelo governo Trump. A Ordo Iuris é uma fundação que atua na defesa dos valores cristãos e da família tradicional na Europa e no mundo. Ela é responsável por elaborar projetos de lei que visam proibir o aborto em qualquer situação na Polônia, um dos países mais restritivos do continente. O Consenso de Genebra é uma declaração assinada por 32 países, incluindo o Brasil, que se comprometem a defender a vida desde a concepção e a soberania nacional sobre as questões de saúde reprodutiva. A declaração é uma reação ao consenso internacional que reconhece o aborto como um direito humano das mulheres.
O estudo “Cartografia dos Catolicismos Jurídicos” é uma importante contribuição para o debate público sobre o aborto no Brasil e no mundo. Ele revela como entidades religiosas usam o direito como uma ferramenta de intervenção política e social, buscando impor seus valores e interesses a toda a sociedade. O estudo também alerta para os riscos que essas entidades representam para os direitos humanos das mulheres e das minorias sexuais e de gênero, que estão sob constante ameaça de retrocessos e violações.
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