A sacerdotisa egípcia Sha-Amun-em-Su foi mumificada e sepultada em um sarcófago por volta do ano 750 a.c., e seu caixão ficou lacrado até 2 de setembro de 2018, quando o incêndio do Museu Nacional destruiu parte da maior coleção egípcia da América Latina. Recebida do soberano egípcio por Dom Pedro II, a múmia era a favorita do imperador, e ficava em seu escritório, no palácio que passou a abrigar o Museu Nacional com o fim do Império. Se as chamas destruíram o caixão de madeira policromado e parte dos restos mortais da sacerdotisa, elas também revelaram nove amuletos que haviam sido vistos pela última vez por quem lacrou o caixão de Sha-Amum-em-Su.
As peças foram apresentadas hoje (7) por pesquisadores do Museu Nacional, que já resgataram cerca de 200 dos mais de 700 itens da coleção egípcia do Museu Nacional. O trabalho de 100 pesquisadores, técnicos, alunos e colaboradores de outras instituições vem revelando que, ao contrário do que sugeriam as primeiras impressões sobre o desastre, muito ainda pode ser salvo da área destruída pelo fogo e pelo desmoronamento dos três andares do Paço São Cristóvão, palácio que serviu de residência à Família Real até o fim do Império.
As 200 peças da coleção egípcia são apenas uma parte das 2,7 mil peças já resgatadas do palácio. Uma das coordenadoras do núcleo de resgate, a paleontóloga Luciana Carvalho enumera que os setores com mais objetos resgatados são a arqueologia, antropologia biológica, etnologia, paleontologia de invertebrados, paleontologia de vertebrados, paleobotânica, mineralogia e petrografia. “Hoje, o processo de resgate está voltado principalmente para essas coleções cientificas”, disse.
Amuleto
Se não houver interrupções por falta de recursos, o pesquisador Pedro Von Seehausen acredita que as buscas pela coleção egípcia podem terminar até outubro. Foi Pedro que identificou o amuleto escaravelho coração, o maior dos que estava dentro do sarcófago da sacerdotisa. Apesar de nunca ter sido vista antes, a forma da peça já era conhecida devido a um método curioso: em 2005, para desvendar o que havia dentro do caixão sem abri-lo, os pesquisadores submeteram o artefato a uma tomografia num hospital particular do Rio de Janeiro.
Dom Pedro II morreu sem ver os amuletos do sarcófago de Sha-Amum-em-Su, que Pedro Von Seehausen exibiu aos jornalistas usando uma luva. “No primeiro momento em que peguei esse escaravelho, a primeira coisa que eu pensei foi que a última pessoa que colocou a mão nele foi a pessoa que fechou o caixão, há 2,7 mil anos”, disse.
Ele contou um pouco da relação do imperador com a coleção. “Dom Pedro II cresceu em meio à coleção egípcia que Dom Pedro I adquiriu. Ele era fascinado por egiptologia e se correspondia com os maiores egiptólogos da época”.
Resgates
Boa parte das peças egípcias resgatadas têm sido encontrada na Reserva Técnica da Arqueologia do Museu, área em que as peças estavam armazenadas sem estarem expostas ao público. “A gente consegue encontrar muito do material intacto nas prateleiras e nas gavetas”, disse Pedro.
Mais de 100 das 200 peças resgatadas são shabtis, estatuetas de 10 a 60 centímetros que eram colocadas nas tumbas, porque os egípcios acreditavam que assim se tornariam servos daquele morto quando ele ressuscitasse.
Uma estatueta funerária de calcário, apelidada pelo público de Dama do Cone, é uma das peças que estava exposta e resistiu ao desastre. O cone de incenso em sua cabeça, porém, foi destruído pelo fogo, e suas cores foram apagadas pelo calor.
A exposição egípcia ficava em uma sala no segundo andar do museu, e quando o prédio desabou, seus objetos se misturaram aos da Reserva Técnica da Museologia, que ficava acima, e aos da exposição da paleobotânica, que ficava no primeiro andar. “Na reserva técnica da museologia tinha muitos armários, muito metal, e isso gerou um emaranhado de ferro que fez a gente pensar que não sobrou nada. Conforme a gente foi andando e olhando entre esse emaranhado, as peças começaram a aparecer”, disse Pedro.
O crânio de uma das oito múmias humanas da coleção também foi resgatado das chamas. No caso das múmias, o fogo destruiu as bandagens, e o impacto do desmoronamento também causou danos aos ossos. Apesar disso, partes dos esqueletos foram preservadas.
O trabalho de escavação e busca pela coleção egípcia ainda está longe da metade, e a preocupação dos pesquisadores é a falta de espaço para armazenar o que ainda será encontrado. Os artefatos vêm sendo guardados em contêineres emprestados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o museu não tem recursos para comprar mais. Ao menos 10 são necessários com urgência, segundo o diretor do Museu, Alexander Kellner, que busca uma audiência com o Ministério da Educação para apresentar o trabalho já realizado e buscar mais apoio.
Apoio
Kellner, que pediu também o apoio da sociedade civil, que pode doar por meio da conta SOS Museu Nacional. As informações para doar podem ser obtidas no site da Associação de Amigos do Museu Nacional. Segundo Kellner, o Museu Nacional recebeu R$ 10 milhões do MEC no ano passado, quantia que foi fundamental para a recuperação do que foi apresentado hoje. Além disso, mais R$ 1 milhão foi repassado para a elaboração de um projeto de restauração da fachada e do telhado. Ainda entram na conta mais R$ 5 milhões recebidos em uma parceria entre o MEC, a UFRJ e a Unesco para a recuperação do palácio e das exposições, e 180 mil euros chegaram do governo alemão para a aquisição de equipamentos técnicos como computadores e drones.
O MEC confirmou que, desde o incêndio, já repassou R$ 15 milhões à UFRJ para obras emergenciais no Museu Nacional, que é vinculado à universidade. Além disso, o ministério disse que já liberou para a UFRJ 40% do orçamento anual de R$ 377 milhões, para custear as despesas até junho. O MEC acrescenta que a UFRJ “possui ainda um montante de R$ 605 mil disponíveis para utilizar até junho em investimento. Já em custeio a instituição tem ainda R$ 81 milhões de reais para gastar até o próximo mês”.
Cônsul
O cônsul do Egito no Rio de Janeiro, Sherif Ismail, acompanhou a apresentação e destacou que o incêndio foi trágico para culturas de diversos países estrangeiros e especialmente do Egito, pela importância da coleção egípcia do museu. Ismail prometeu ajuda técnica para a restauração das peças e convidou a direção do museu para visitar o Egito e acertar parcerias. A doação de novas peças egípcias para o Museu Nacional não será possível, explicou ele, porque a lei do país africano impede que os artefatos sejam alugados ou emprestados. Apesar disso, ele disse que o governo egípcio buscará dar suporte ao Museu Nacional.